FRATERNIDADE SANTA CLARA
Sumaré
Ordem Franciscana Secular
Os franciscanos seculares constituem uma verdadeira Ordem na Igreja. Não formam um mero movimento ou associação qualquer. A OFS é uma ordem reconhecida pela Igreja, que lhe apresenta uma forma de vida chamada Regra.
Como tal, ela é acolhida, aceita e abençoada pela Igreja em todas as partes do mundo. Ela faz parte da grande Família Franciscana e contribui para a plenitude de seu carisma.
A Ordem Franciscana Secular é constituída por Fraternidades abertas a todos os cristãos seculares.
Nelas há lugar para jovens, para casados, viúvos e celibatários no mundo; para clérigos e leigos; para todas as classes sociais, todas as profissões, para todas as raças; para homens e mulheres. Há lugar para todos porque se busca viver segundo o Santo Evangelho como irmão e irmãs da penitência.
O projeto de vida de todo cristão e especialmente de todo franciscano secular é o seguimento da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, conforme os ensinamentos que nos foram revelados através do Santo Evangelho. Por isso, a Regra e a vida dos franciscanos seculares é esta: observar o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, segundo o exemplo de São Francisco de Assis, que fez do Cristo o inspirador e o centro de sua vida com Deus e com os homens (Rg 4; 1Cel, 18, 115).
A OFS se articula em Fraternidades de vários níveis: local, regional, nacional e internacional. E toda fraternidade, de qualquer nível, goza de autonomia administrativa, econômica e financeira. Porém, as fraternidades dos diversos níveis estão coordenadas e ligadas entre si segundo a Regra, as CCGG, o ritual e os estatutos.
Quer ser Franciscano?
É simples: entre em contato informando o seu nome completo, e-mail, endereço postal e, opcionalmente, seu telefone de contato. A OFS retornará uma mensagem com todas as orientações necessárias assim como informará o endereço da Fraternidade Franciscana mais próxima, caso exista, onde você poderá fazer uma visita, conhecer os seus novos irmãos e matar todas as curiosidades para tornar-se franciscano/a secular (leigo/a casado/a ou solteiro/a) e praticar um jeito diferente de evangelizar a si próprio/a, a sua família e os irmãos e irmãs do seu convívio. Venha nos conhecer?
Tau
São Francisco nutria grande veneração e afeto pelo sinal TAU. E mesmo o recomendava muitas vezes por palavras e escrevia de próprio punho sob as cartas que enviava, como se de sua missão consistisse, conforme a palavra do profeta, em 'marcar com um TAU a fronte dos homens que gemem e choram' (Ez 9,4), convertidos sinceramente a Cristo.
Toda a família franciscana nutre um grande carinho pelo TAU, fazendo dele seu distintivo e seu programa de vida. Mas não só os franciscanos; também outras pessoas que se identificaram interiormente com a mensagem de são Francisco de Assis, "o irmão universal", usam com cada vez mais freqüência o TAU como expressão da sua simpatia e do seu compromisso com os ideais do Santo de Assis.
O que significa o TAU? Como são Francisco chegou a fazer dele seu "selo e sua assinatura"? Que programa de vida e de ação encerra para todos os que, hoje, usam?
1- O significado simbólico do TAU:
O "TAU" é uma letra dos alfabetos hebraico e grego (T). No alfabeto hebraico (língua em que foi escrita a Bíblia), ela ocupa o ultimo lugar, passando a significar, assim, a "complementação da Lei". Ela é também a primeira letra da palavra "Torah" (Lei). A letra grega TAU baseando-se no texto do profeta Ezequiel 9,4 tornou-se símbolo da cruz fim e complementação da antiga Lei: "Percorre a cidade o centro de Jerusalém e marca com uma cruz (TAU) na frente os que gemem e suspiram devido a tantas abominações que na cidade se cometem".
Na época da Patrística (primeiros séculos da Cristandade) a letra TAU foi interpretada como a cruz de Jesus Cristo símbolo da complementação da antiga lei. Pelo seu aspecto gráfico o TAU (T) lembrava o mastro de um navio. Navio simbolizava a Igreja (barca de Pedro comunidade dos redimidos) o mastro simbolizava também a cruz de Cristo que é a força condutora da Igreja.
2- São Francisco e o TAU.
Como São Francisco chegou a usar o TAU, de modo a identificar-se com ele?
a) Pela influência da época. Na época de Francisco o TAU era conhecido comumente pelo povo e entendido como sinal da salvação, com sei rico significado simbólico e com seus poderes até de afastar pestes ou curar doentes.
b) Pelo contato com as Eremitas de Santo Antão (ou Antônio). Sabe-se que a conversão definitiva de Francisco, o encontro com Cristo pobre e crucificado, se deu no beijo depositado no rosto de um leproso. Os primeiros anos da sua vida segundo o Evangelho, Francisco passou tratando dos leprosos, nas proximidades de sua cidade natal, Assis. Os leprosos eram para ele a presença viva do próprio Cristo. Ora, nas idas a Roma costumava a hospedar-se no hospital de leprosos mantidos pelos irmãos de Santo Antônio. Estes portavam um grande TAU nos seus hábitos, sinal de pertença a irmandade e de serviços de caridade.
c) O TAU, símbolo do compromisso com o Evangelho e da renovação da Igreja. A mais forte influencia, para o uso do TAU, exerceu sobre São Francisco o concilio Lateranense IV, convocado pelo Papa Inocêncio III e iniciados aos 11 de novembro de 1215.
O Papa convocou este Concílio com o propósito de despertar toda a Cristandade para dois objetivos: a defesa dos lugares Santos da Palestina, contra os Sarracenos e, o que é mais importante, para uma campanha de renovação da Igreja Universal.
A importância deste Concílio expressam bem os números das pessoas convocadas pelo Papa: 2212 padres conciliares, dos quais 412 bispos, 800 abades e superiores das Ordens Religiosas, e o restante, os embaixadores, teólogos e líderes dos movimentos religiosos. São Francisco foi convidado a participar deste concilio na qualidade de fundador de uma nova Ordem.
O Papa abriu os trabalhos conciliares com uma fantástica pregação que imediatamente adquiriu uma larga repercussão. O fio condutor foram as palavras de Cristo: " Ardentemente desejo comer esta Páscoa convosco" (Lc 22,15). Lembrou que "Páscoa" significa "passagem" e fez votos que o Concilio, a nova Páscoa, dê inicio à tríplice "passagem": corporal, espiritual e eterna. A passagem corporal seria a cruzada e a recuperação de Jerusalém; a passagem espiritual deveria ser a mudança de costume, ou seja, a reforma da Igreja; a passagem eterna significa a renovação da vida espiritual pelos Sacramentos, especialmente da Eucaristia e da Penitência. A segunda parte da pregação, referente a passagem espiritual, foi o energético comentário ao Capitulo 9 do Livro de Ezequiel. O Papa fez suas as palavras do profeta: "Percorre a cidade, o centro de Jerusalém, marca com uma cruz (com o TAU) na fronte os que gemem e suspiram devido a tantas abominações que na cidade se cometeram" (Ez 9,4), e acrescentou: O TAU é a ultima letra do alfabeto hebraico e a sua forma representa a cruz, exatamente tal e qual foi a cruz antes de ser nela afixada a placa com a inscrição de Pilatos. O TAU é o sinal que o homem porta na fronte quando com todo o seu ser revela a irradiação da cruz... Sejam, portanto, os mestres desta cruz".
São Francisco ficou vivamente impressionado com este apelo. Sentiu-se pessoalmente convocado a fazer conforme a Igreja lhe pedia: do apelo do Papa fez o programa da sua vida e apostolado e do sinal TAU fez o seu próprio distintivo.
Vida Franciscana Secular
PREZADOS IRMÃOS E IRMÃS, INICIANDOS À VIDA FRANCISCANA SECULAR:
PAZ E BEM!
A todos aqueles e aquelas que desejam viver o Evangelho à maneira de São Francisco de Assis, na secularidade, conforme a Encíclica Lumem Gentium, 31: A índole secular caracteriza especialmente os leigos... É específico dos leigos, por sua própria vocação, procurar o Reino de Deus, exercendo funções temporais e ordenando-as segundo Deus. Vivem no século, isto é, em todos e em cada um dos ofícios e trabalhos do mundo. Vivem nas condições ordinárias da vida familiar e social, pelas quais sua existência é como que tecida. Lá são chamados por Deus par que, no exercício do próprio ofício, guiados pelo espírito evangélico, contribuam, de dentro, como fermento na massa, para santificação do mundo.
Deus ama a todos incondicionalmente. Conhece nossas fraquezas, nossos pecados, nossas infidelidades e mesmo assim nos chama de filhos, atende nossas orações, nos abençoa, nos perdoa!
Convida-nos para desenvolvermos os dons, que a nós foram emprestados, convida-nos a dizermos sim. Um sim doação, um sim batismal consciente, um sim que se reveste de esforço contínuo, de estudos, vivência, dedicação e amor transformador dos nossos corações à semelhança do nosso mestre e Senhor Jesus Cristo. Ele mesmo rezou por nós em sua oração sacerdotal: "Eu já não estou mais no mundo, mas eles estão ainda no mundo... Dei-lhes a tua palavra, mas o mundo os odiou, porque eles não são do mundo, como também Eu não sou do mundo. Não peço que os tires do mundo, mas sim que os preserves do mal" (Jo17,11;14-15).
Vida de São Francisco
Biografia de São Francisco de Assis
São Francisco de Assis (1182-1226) foi um religioso italiano, fundador da Ordem dos Franciscanos. Era filho de um rico comerciante, mas fez votos de pobreza. Foi canonizado pelo papa Gregório IX, dois anos depois de sua morte. É conhecido como o protetor dos animais.
Infância e Juventude
Giovanni di Pietro di Bernardoni, nome ve Francisco de Assis, nasceu em Assis, na Itália, no dia 5 de julho de 1182. Era filho de Pica Bourlemont e Pedro Bernardone Maricone, rico e conceituado comerciante de tecidos de Assis.
Seu pai estava na França quando o filho nasceu, na volta rebatizou-o com o nome de Francesco, isto é 'francês"
Francisco de Assis estudou na escola Episcopal, onde aprendeu a ler, escrever e principalmente contar. Enriquecer era uma obsessão naquela época. Ajudava seu pai no comércio, mas viver atrás de um balcão não era trabalho que o atraia.
Em 1197, morre o imperador romano-germânico, Henrique VI, senhor de grande parte da Itália, mas seu filho tinha apenas dois anos e vários nobres disputavam o trono. O Ducado de Assis era controlado pelo duque de Spoleto, que cobrava pedágio de tudo que atravessasse a região.
Inicia-se então uma revolta dos mercadores de Assis, que destroem a fortaleza do duque e conseguem conquistar o poder. Em 1198 Inocêncio III é eleito papa e a Santa Sé quer tirar vantagem com o enfraquecimento do império. Um enviado do pontífice logo chega à cidade de Assis, com o encargo de substituir o governador imperial.
Entre 1201 e 1202, os revoltosos organizam uma tropa para dar combate à nobreza feudal que recebera do imperador um privilégio que irritava os mercadores. Francisco participou das lutas entre Assis e Perúsia e ficou preso por quase um ano.
Em 1203, de volta a sua cidade, tenta recuperar o tempo perdido. Entrega-se a uma vida de festas e torneios, mas logo se mostra insatisfeito e resolve mudar de vida e resolve ser cavaleiro.
Para chegar a esse posto teria que começar como escudeiro de um nobre. Francisco parte para sua missão. Durante o percurso, ao encontrar os mendigos, vai se desfazendo de seus pertences.
Decide voltar para sua casa, sem a glória que a família esperava, e indagando dizia:
“Como pode haver tanta injustiça, tanto luxo, ao lado de tanta pobreza?”.
A Conversão
Conta-se que em 1206, orando na capela de São Damião, em Assis, Francisco ouviu de Deus as seguintes palavras: "Vá, Francisco, e restaure a Minha Casa!". Imaginando tratar-se de reconstruir a Capela, volta para casa, vende boa parte dos tecidos do pai, e entrega-se ao serviço de Deus e dos miseráveis.
Em 1208, afinal compreende o sentido da mensagem: restaurar a igreja como instituição, uma vez que ela havia se desviado dos ensinamentos de Cristo e vivia cercada de opulência. Faz votos de pobreza e começa a pregar sua doutrina.
Francisco de Assis, decidido a cumprir as Escrituras sagradas, passa a viver voltado apenas para o espírito. Seus sermões eram cada vez mais frequentados, sua fama vai se espalhando e as poucos já tinha seguidores, dispostos a formar uma nova ordem religiosa.
Em 1208, pede autorização ao papa para fundar uma irmandade mendicante. Em 1219 estava fundada a “Ordem dos Irmãos Mendigos de Assis", que se instalou em cabanas no alto dos montes e no interior das cavernas, renunciando qualquer forma de propriedade.
Ordem dos Franciscanos
Em 1215, no intuito de resguardar a autoridade papal, o Concílio de Latrão reconhece a "Ordem dos irmãos Menores de Assis”. O Cardeal Ugolino é designado “protetor” da Ordem. Francisco consente repartir seus discípulos em dois grupos para seguir em peregrinação pelo mundo para disseminar o sentimento da fé cristã e converter os infiéis.
Durante a peregrinação, os franciscanos tiveram seus primeiros martírios, cinco discípulos foram mortos, em Ceuta, pelos muçulmanos pois recusarem sua conversão ao islamismo.
Francisco de Assis embarca para a Terra Santa, onde é aprisionado e levado ao Sultão. Para mostrar a superioridade da fé cristã, Francisco anda sobre brasas e imediatamente é libertado.
Em 1220, Assis volta para a Itália e encontra uma cisão no movimento. Alguns discípulos, pressionados por Ugolino, preconizam uma reforma, com novas “regras”, menos severas quanto ao voto de pobreza.
Em 1221, Assis apresenta um texto com a nova “Regra” para a ordem: “Observar o Santo Evangelho, viver da obediência, da castidade e não possuir absolutamente nada, e só dividir a pobreza”.
O texto é recusado pelo cardeal Ugolino. Em 1223, o texto é retocado e finalmente aceito pelo papa Honório III. Os franciscanos perdem muito dos traços que os distinguiam.
Morte
Em 1224, decepcionado e doente, Francisco de Assis é obrigado a moderar suas atividades. Nesse mesmo ano renuncia a direção efetiva da irmandade que criara, e em companhia dos discípulos parte em direção à floresta, para viver em contato com a natureza.
Conta-se que na floresta, em sua presença, os peixes saltavam da água e os pássaros pousavam em seus ombros. Certo dia orando, no alto do rochedo, desceu do céu um serafim de asas resplandecentes, trazendo nos braços uma cruz.
Quando a imagem desaparece, Francisco percebe marcas de sangue nas mãos e pés, como se tivessem sido atravessados por pregos. Doente, Francisco implora que o levem para Assis, onde quer morrer.
São Francisco de Assis faleceu assistido pelos discípulos, em Assis, Itália, no dia 3 de outubro de 1226. Dois anos depois de sua morte, é canonizado pelo papa Gregório IX.
Na igreja de São Francisco de Assis, Assis, Itália, inaugurada em 1256, estão guardados os restos mortais do santo.
O que a Fraternidade espera de seus ministros
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
"Pensamos em ministro ou ministra. Na realidade a questão deveria ser formulada de outra maneira: O que se espera do ministro e de seu conselho? O ministro anima e governa com seu conselho. Certo que a figura do ministro tem como que alguma coisa de especial. É sempre o primeiro a ser escolhido do dia das eleições. As fraternidades de verdade aos poucos vão preparando alguns de seus membros para serem ministros. É um serviço que não se improvisa. Necessário que se faça a melhor escolha possível usando a graça do discernimento. O ministro ama os irmãos e a anima a vida da fraternidade.
"A primeira preocupação do ministro é a de promover a fraternidade, não permitindo que nada se sobreponha ao amor fraterno, que prática alguma venha a ferir a caridade. Soa aos nossos ouvidos as palavras de São Francisco: "E onde quer que os irmãos estiverem e se encontrarem, tratem-se uns aos outros como membros de uma só família. Pois se uma mãe nutre a ama seu filho carnal, com quanto mais motivação deve cada um amar e nutrir seu irmão espiritual".
"Espera-se do ministro que não seja mero funcionário de uma organização, mas pessoa revestida de solicitude e atenção. Ele terá traços de mãe e de pastor. Os irmãos serão tratados com respeito, reverência e compreensão. No caso de ser necessária uma conversão esta será feita com humildade e mansidão. Francisco tinha tempo para os irmãos. Os ministros colocam os irmãos como prioridade.
"O ministro seja vigilante, o que não quer dizer "espião". Vigilância significa atenção, dar-se tempo de acompanhar a trajetória dos irmãos. O ministro vigilante é aquele que não deixa a ovelha se desgarrar, que previne antes de remediar, que encontram meios e modos que seus irmãos tenham gosto e paixão pelo Senhor.
"Ele se faz presente pessoalmente na vida dos irmãos. Isto se dá nos dias de reunião, em encontros da fraternidade, fazendo-se presente de quando em vez nos encontros de formação dos iniciantes. Quando há encontros regionais o ministro se fará incentivador da participação de todos. O ministro une sua fraternidade local ao movimento franciscano e a toda a família franciscana.
"O ministro não se apega a cargo, não luta para conseguir dois terços da votação no primeiro escrutínio quando já ocupou o cargo por dois períodos seguidos. "Se a privação do cargo de superior perturbar mais do que a privação do cargo de lavar os pés, os que assim agirem estariam amontoando para si tanto mais riquezas com perigo para suas almas" (Adm 4).
"O ministro sempre há de se interessar pela vida familiar dos irmãos. Na realidade, os membros de uma fraternidade são esposo, esposa, filhos, pais, avós. Tudo o que estiver ligado à família do irmão é preocupação e alegria para o ministro.
"O ministro haverá de promover a vida apostólica dos membros de sua fraternidade. Os franciscanos seculares são agentes qualificados da ação pastoral. Estes serão sempre pessoas preparadas para anunciar o Evangelho pela palavra e pela vida com competência. Não se pode conceber uma fraternidade indiferente à pastoral e evangelização. Ou então agentes de pastoral mais com jeito de funcionários de uma firma.
"O ministro tem sempre cuidados especiais pelos mais fracos e doentes, seja do corpo ou do espírito. Os que erram precisam ter a certeza de encontrar misericórdia no coração do ministro. "Não haja irmão no mundo, mesmo que tenha pecado a mais não poder não saia de tua presença sem obter misericórdia diante de teus olhos: ama-o mais do que a mim tendo em vista conquista-lo para o Senhor" (Carta de Francisco a um Ministro).
"O ministro (sempre com o seu conselho) prestará atenção a determinados ângulos e aspectos da vida franciscana secular:
o Boa e mesmo excelente qualidade da reunião geral;
o Atenção aos que faltam, procurando saber se não estão se desmotivando;
o Fazer com que todos, na medida de seus talentos e possibilidades participem da vida da fraternidade e se sintam úteis;
o Ninguém pode deixar uma reunião da fraternidade dizendo que perderam seu tempo;
o Cuidar que os irmãos não percam a identidade franciscana.
São Francisco e a Eucaristia
Narra o seu primeiro biógrafo, Tomás de Celano - "ardia de amor com todas as fibras do seu ser pelo sacramento do Corpo do Senhor". E "considerava grave sinal de desprezo não participar em pelo menos uma missa por dia, se o tempo o permitia. Comungava com muita frequência e com tanta devoção que tornava devotos também os outros". Depois, um dia quis enviar os frades pelo mundo "com píxides preciosas, para que alcançassem do modo mais digno possível o preço da redenção, onde quer que o vissem conservado com pouco decoro". E queria também que se demonstrasse grande respeito pelas mãos do sacerdote, porque lhes foi conferido o poder divino de consagrar este sacramento. "Se me acontecesse - dizia com frequência - encontrar juntos um santo que vem do céu e um sacerdote pobrezinho, saudaria primeiro o sacerdote e correria a beijar-lhe as mãos". De facto, diria: "Ei! Espera, São Lourenço, porque as mãos deste tocam o Verbo da vida e possuem um poder sobre-humano!".
Está resumido nesta página todo o sentido da vida eucarística de São Francisco. Nada falta: a missa, a comunhão, a adoração, o decoro do altar e das igrejas, a veneração pelos sacerdotes. Em tudo isto Francisco é mestre e modelo quer para os sacerdotes quer para os simples fiéis.
E entre os seus filhos espirituais não faltarão figuras admiráveis de serafins da eucaristia, como António de Pádua e Boaventura que escreveram páginas de doutrina sublime; como Pascoal Baylon, que se tornou protector dos congressos eucarísticos; como José de Cupertino que se elevava com a face estática em direcção aos ostensórios e aos tabernáculos; como Pio de Pietrelcina que durante várias horas por dia e de noite se detinha em oração junto do altar eucarístico.
A missa era para Francisco um mistério tão sublime que na carta ao capítulo geral e a todos os frades escreveu estas exclamações ardentes: "Trepide a humanidade, o universo inteiro trema, o céu exulte, quando no altar, nas mãos do sacerdote, estiver Cristo filho de Deus vivo". O que perturba o santo de Assis é o amor de Jesus levado até à humildade inconcebível: "Ó admirável altura, ó dignidade maravilhosa! Ó humildade sublime! Ó sublimidade humilde, que o Senhor do universo, Deus e Filho de Deus, se humilhe a ponto de se esconder, pela nossa salvação, no pequeno pedaço de pão!".
Por isso ele considerava grande falta de amor a ausência da missa quotidiana. Portanto, não só participava pelo menos numa missa, mas quando estava enfermo, na medida do possível, pedia para que celebrassem a missa na sua cela, ou pelo menos pedia que lhe lessem a página do Evangelho do dia.
Francisco ensina como receber a sagrada comunhão: "Comungava muitas vezes - diz Tomás de Celano - e com tanta devoção que tornava devotos também os outros". É suficiente pensar que logo depois da comunhão "muitas vezes entrava em êxtase". E Tomás de Celano revela-nos o ânimo de Francisco escrevendo que "quando recebia o Cordeiro imolado, imolava o espírito naquele fogo, que ardia sempre no altar do seu coração".
Francisco preparava-se para a sagrada comunhão com um cuidado muito atento: não só a sua vida santa, rica de heroísmos quotidianos, mas também a confissão sacramental devia preparar todas as vezes a sua alma para receber Jesus eucarístico com o máximo candor de graça. Naquela época não podia comungar mais do que três vezes por semana: pois bem, Francisco confessava-se três vezes por semana. Quando se ama, quer-se agradar à pessoa amada, doando-lhe tudo o que a possa rejubilar. A alma purificada pelo sacramento da confissão torna-se uma habitação cheia de candor e de perfume para Jesus, hóstia imaculada. Francisco não só o sabia e o fazia, mas recomendava-o a todos com fervor seráfico. Dirigindo-se aos fiéis Francisco escrevia que Jesus "quer que todos sejam salvos por Ele, e que Ele seja recebido com coração puro e corpo casto. Mas são poucos os que o querem receber...". E dirigindo-se aos governantes do povo: "Aconselho-vos, senhores, a pôr de lado qualquer cura e preocupação e a receber devotamente a comunhão do Santíssimo Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo".
Além disso, quando se ama vê-se com olhos de amor não só a pessoa amada, mas também tudo o que lhe diz respeito. Neste sentido, São Francisco cultivou a tensão altíssima de amor quer à adoração da eucaristia, quer à veneração por tudo o que se refere à eucaristia, isto é, às igrejas e aos sacerdotes.
A paixão de amor pela adoração eucarística era tão fervorosa em Francisco, que não foram poucas as noites inteiras por ele transcorridas aos pés do tabernáculo. E se por vezes o sono se apoderava dele, adormecia por alguns minutos nos degraus do altar, e depois recomeçava incansável e fervoroso.
Para Francisco, a fé na Eucaristia é um todo com a fé na Santíssima Trindade e no Verbo encarnado. E queria que fosse assim para todos. Por isso, escrevia com vigor e ardor: "O Filho, enquanto Deus como o Pai, em nada difere do Pai e do Espírito Santo. E então quantos se detiveram unicamente na humanidade do Senhor Jesus Cristo e não viram nem acreditaram no Espírito de Deus, que Ele é verdadeiro Filho de Deus, foram condenados; de modo semelhante agora todos os que vêem o sacramento do corpo de Cristo, o qual é sacrificado no altar mediante as palavras do Senhor, mas para o ministério do Sacerdote, sob as espécies do pão e do vinho, e não vêem nem crêem, segundo o Espírito de Deus que Ele é deveras o Santíssimo Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, são condenados". E mais adiante continua a sua admoestação com uma comparação eficaz: "Assim como apareceu aos santos apóstolos em verdadeira carne, assim agora se mostra a nós no pão consagrado; e assim como eles com o olhar físico só viam a sua carne mas, contemplando com o olhar da fé, acreditavam que Ele é Deus, é também nós, vendo o pão e o vinho com o olhar do corpo, vemos e firmemente cremos que o seu Santíssimo Corpo e Sangue são vivos e verdadeiros".
Esta fé e este amor chegarão ao ponto de lhe fazer exclamar várias vezes que "do altíssimo Filho de Deus não vejo nada mais corporalmente, neste mundo, do que o Santíssimo Corpo e o Sangue (...) E quero que estes Santíssimos mistérios sejam honrados, venerados e colocados em lugares preciosos antes de todas as coisas".
O amor à Eucaristia é inseparável do amor à casa do Senhor. Não se pode amar Jesus e descuidar a sua habitação. Também sobre isto Francisco deixou uma lição maravilhosa em fervor e prática. Pessoalmente ele preocupava-se com a limpeza das igrejas, dos cálices e das píxides, das toalhas e das hóstias, dos vasos de flores e das lâmpadas.
Exortava os ministros do altar a serem fervorosos e fiéis ao circundar o Santíssimo Sacramento com todas as decorações e reverências. Dirigindo-se aos guardiães afirmava: "Peço-vos, mais do que se o fizesse a mim mesmo, que quando for conveniente e virdes que é necessário, supliqueis humildemente aos sacerdotes para que venerem acima de tudo o Santíssimo Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo (...) Os cálices, os corporais, os ornamentos dos altares e tudo o que diz respeito ao Sacrifício devem ser preciosos. E se o Santíssimo Corpo do Senhor for colocado de modo mísero num lugar qualquer, segundo o preceito da Igreja, seja por ele colocado num lugar precioso, conservado e levado com grande veneração e seja dado devidamente aos outros (...) E quando é consagrado pelo sacerdote no altar e levado a qualquer lugar, todos, de joelhos, prestem louvor, glória e honra ao Senhor Deus, vivo e verdadeiro".
Quando chegava a uma cidade, depois de ter pregado ao povo, normalmente reunia a parte do clero e falava destes problemas com fervor apaixonado, recorrendo até à ameaça das penas eternas: "Não se comove o nosso ânimo - exclamava - sabendo que o Senhor, tão bom, se confia nas nossas mãos e nós podemos tocá-lo e recebê-lo?". Ou ignoramos que cairemos nas suas mãos? Corrijamo-nos decididamente, portanto, destas e de outras coisas, e onde quer que se encontre o Santíssimo Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo, colocado e deixado indignamente, retiremo-lo daquele lugar e coloquemo-lo e encerremo-lo num lugar precioso".
Ainda mais correctamente, o próprio Francisco indo pregar pelas cidades e aldeias "levava consigo uma vassoura para limpar as igrejas", como refere a Legenda perusina, porque "sofria muito se entrasse numa igreja e a visse suja", o que fazia com que recomendasse aos sacerdotes "de ter o máximo cuidado em manter limpas as igrejas, os altares e todas as alfaias que servem para a celebração dos mistérios divinos".
Se a isto acrescentarmos que Francisco pedia a Clara que preparasse os corporais para doar às igrejas pobres e que ele mesmo por vezes preparava os vasos de flores para o altar, podemos ter uma ideia mais completa do seu fervor eucarístico.
Por fim, o que dizer da veneração de Francisco pelos sacerdotes? É suficiente voltar às palavras do seu testamento: "O Senhor deu-me e continua a dar-me tanta fé nos sacerdotes que vivem segundo a forma da Santa Igreja romana, devido à sua ordem, que se me perseguissem desejo recorrer a eles e não quero considerar o seu pecado, porque neles vejo o Filho de Deus".
Aos mesmos sacerdotes ele diz com amor: "Cuidai da vossa dignidade, irmãos sacerdotes, e sede santos porque Ele é Santo. E assim como o Senhor Deus vos honrou acima de todos os homens, por este mistério, assim vós mais do que qualquer outro homem amai-O e honrai-O". É deveras inefável a dignidade daquele que "personaliza Cristo" e está chamado a ser em toda a parte "presença de Cristo" e a pensar, falar e agir em tudo "como Cristo".
Por isso Francisco preocupa-se com que os sacerdotes possam celebrar sempre "a missa puros e, cheios de pureza, cumpram com reverência o verdadeiro sacrifício do Santíssimo Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, com intenção santa e pura". Que eles tenham sempre a máxima devoção e o máximo candor da alma, com a perfeita obediência a todas as normas da Igreja e com toda a delicadeza ao levá-lo nas mãos e ao distribuí-lo aos outros, fazendo assim admirar até os anjos que os assistem.
Francisco não se cansa de recomendar aos sacerdotes sobretudo a humildade, referindo o exemplo do próprio Jesus que "todos os dias se humilha, como quando desceu da sede real ao seio da Virgem: de facto, todos os dias Ele mesmo vem a nós sob aparência humilde, todos os dias desce do seio do Pai ao altar nas mãos do sacerdote".
E as mãos do sacerdote deveriam ser puras como as de Nossa Senhora, recomenda o padre seráfico, exprimindo-se com estas palavras sublimes: "Ouvi, meus irmãos. Se a Bem-Aventurada Virgem é tão honrada, como é justo, porque o levou no seu santíssimo seio (...) quanto mais deve ser santo, justo e digno aquele que o toca com as suas mãos, recebe no coração e nos seus lábios e oferece aos outros, para que o comam, Ele já não morredouro, mas eternamente vivo e glorificado, sobre o qual os anjos desejam fixar o olhar".
São Luís de França: santo leigo franciscano
Padroeiro da OFS
O século XIII é um dos mais fecundos na história da Idade Média. O surgimento das universidades testemunha a sede de saber e a efervescência do pensamento filosófico e teológico. A ebulição religiosa se traduz na construção das magníficas catedrais, onde a fé transforma pedras em arte, beleza, e luz. No século XIII são fundadas também algumas das mais importantes Ordens religiosas da Igreja, os dominicanos e os franciscanos em particular, com seus respectivos santos: Francisco de Assis, Domingos de Gusmão, Antônio de Pádua, Clara de Assis, Boaventura, Tomás de Aquino, entre outros. Por outro lado, é um século marcado pela inquietude religiosa, pelo espocar das heresias, marcadamente em território francês, pela luta entre papado e império, pelo recrudescimento da inquisição, pela ameaça constante do islã, pelas cruzadas, e pelas lutas internas entre os reinos, que aos poucos vão configurando o espaço geográfico que mais tarde seria conhecido como Europa[1]. A França ocupa um lugar de destaque neste cenário[2]. Na passagem do século XII para o século XIII, seus monarcas estão entre os mais célebres e respeitados do Ocidente.
Um dos pressupostos da história é a capacidade de fazer "memória", de tornar vivo e presente fatos, personagens e acontecimentos que, de outro modo, seriam relegados ao baú do eterno esquecimento. No presente artigo, nosso objetivo é fazer memória da vida de Luís de França. Queremos conhecer um pouco mais sobre este personagem medieval, leigo, homem de governo, pai de família, cristão fiel. Queremos fazer isso nos questionando sobre o papel desempenhado pelos frades franciscanos em sua vida, suas mútuas relações e interações, que o fizeram ser alçado ao posto de Patrono da Ordem Franciscana Secular.
Apresentar um texto a respeito de um personagem que viveu há oitocentos anos atrás, sobre o qual, aparentemente tudo já foi dito, pode parecer uma temeridade[3]. Temeroso também é se aventurar a retratar a vida de um sujeito histórico envolto em polêmicas, fruto, em alguns casos, de uma compreensão descontextualizada de sua vida, de seu tempo e da própria história. Mesmo assim, dados os múltiplos contextos e as múltiplas relações nas quais esteve envolvido este soberano medieval, acreditamos que seja possível apresentar alguns enfoques particulares, que lancem luzes sobre alguns aspectos de sua vida, e que podem, ao mesmo tempo, iluminar a história que estamos vivendo, escrevendo e construindo. Por isso, não vamos nos ocupar exaustivamente da vida de São Luís. Embora façamos um breve sobrevoo sobre sua biografia, seus feitos em geral, nosso foco é específico: a influência do movimento franciscano na vida de Luís IX[4].
Luís IX
O ano do nascimento de Luís não nos é conhecido. Sabe-se que o dia 25 de abril de 1214 pode ter sido tanto a data de seu nascimento, como de seu batismo. O fato é que, com apenas doze anos, por causa da morte de Luís VIII, seu pai, o menino tem que assumir um dos tronos mais importantes do Ocidente. No dia 30 de novembro de 1226, menos de dois meses após a morte de Francisco de Assis, o pequeno Luís era sagrado rei, na cidade de Reims, na França, com o título de Luís IX. Até Luís atingir a maioridade, a rainha Branca de Castela, sua mãe, será a tutora do rei e regente do reino[5].
Na "geografia" espiritual do Ocidente medieval, a França destaca-se, por ser a "filha primogênita da Igreja"[6]. Os monarcas franceses, por sua vez, em função da unção que recebem na cerimônia de consagração, com o óleo da "santa âmbula", gozam de uma exclusividade sobre os demais reis europeus: são os reis mais cristãos da Europa, o rei da França é o "Rex Christianissimus", o "Rei Cristianíssimo".
Seguindo a tradição, o jovem príncipe foi educado, desde a mais tenra idade, dentro dos princípios cristãos, que também norteavam a vida de seus pais. Luís VIII era cognominado "Leão", por sua bravura nos campos de batalha, mas também por sua firmeza no combate aos inimigos da fé, testemunhada principalmente no empenho para eliminar a heresia cátara no sul da França. Preocupados em dar uma boa formação religiosa e intelectual ao futuro rei, seus pais confiaram sua educação a preceptores de comprovado saber e fidelidade religiosa[7].
Sua mãe teve que enfrentar sérios desafios durante a minoridade do filho, até consolidar o poder. Nobres e opositores do reino argumentavam com a menoridade de Luís, e pelo fato de a regente ser uma mulher. A Inglaterra aproveitou da ocasião para fazer valer seus direitos sobre territórios perdidos nos anos anteriores. Branca, todavia, soube mostrar seu valor, fazendo frente de modo corajoso e firme a todas as ameaças ao trono. Luís atingiu a maioridade aos dezenove ou vinte anos, em 25 de abril de 1234, e logo a seguir casou-se com Margarida de Provença. Sua mãe, no entanto, continuou ocupando uma posição de proeminência nas decisões mais importantes do reino.
Principais informações sobre a vida de São Luís
Estamos muito bem informados sobre a vida de Luís, através das várias biografias, escritas por contemporâneos seus, ou pessoas próximas a seus familiares. As principais informações nos foram transmitidas por seu amigo, confidente, e mais importante biógrafo, o leigo Jean de Joinville, que escreveu "A Vida de São Luís"[8]. Outra biografia foi escrita por Godofredo de Beaulieu, frade dominicano e confessor do rei, que lhe esteve muito próximo nos últimos vinte anos de sua vida. O capelão do rei, Guilherme de Chartres, Grão-Mestre da Ordem dos Templários também escreveu uma "Vida de São Luís". Outra fonte importante é a vida escrita pelo franciscano Guilherme de Saint-Pathus, confessor da rainha Margarida de Provença, que se utilizou do inquérito papal para a canonização de Luís, para escrever a sua "Vida"[9]. Finalmente, outra obra sobre a vida de Luís foi escrita por Guilherme de Nangis, também confessor da rainha Margarida[10]. As biografias de Luís, para além das intenções políticas que as permeiam, nos fornecem importantes informações sobre a vida, as opções, o modo de agir de um homem que, colocado à frente da administração política de um reino, buscou pautar sua vida segundo os valores do Evangelho e dos padrões propostos pela Igreja de seu tempo. E o fez de modo tão perfeito, que chegou à honra dos altares.
1.2 Um santo leigo!
Diferentemente dos santos de seu tempo, Luís é um santo leigo, e é casado. Isto não deixa de ser notado pela maioria de seus biógrafos: santo, apesar de ser leigo e casado! Humilde, piedoso, virtuoso, Luís, no entanto, continua um leigo, não é um sacerdote[11]. É, sobretudo, casado, pai de família, que não renuncia às obrigações e prazeres conjugais e à sexualidade, submetidos aos ditames da lei da Igreja, como os "dias de resguardo"[12]. Luís vai ser pai de onze filhos, três dos quais nascem durante sua permanência no Egito. Sua mulher o acompanha na peregrinação. Sua biografia, a primeira vida de um santo escrita por um leigo, vai priorizar elementos que normalmente não se destacavam nas biografias, quase todas escritas por eclesiásticos e sobre clérigos: Jean de Joinville vai pôr em relevo, na vida de Luís, sua relação com a sexualidade, com a guerra e a política. É um rei que vai à guerra, que combate valorosamente, inclusive nas cruzadas, mas é, ao mesmo tempo, um rei de paz, que tudo faz para mantê-la, através dos tratados e negociações.
Isso não o impede de exercer bem suas funções em favor do povo. Coadjuvado em grande parte pela astúcia política de sua mãe, Branca de Castela, Luís conseguiu estabelecer a paz e a harmonia no reino. Isso foi conseguido após árduas batalhas, mas também através de hábeis negociações e uma série de tratados, onde não faltaram os matrimônios arranjados entre os irmãos do rei e as filhas da nobreza de reinos circunstantes, em função da pacificação e do fortalecimento dos laços do reino com outras potências. Outra frente de atuação de Luís foi a organização das finanças. Em política, Luís tentou instaurar um código de conduta especificamente cristão.
1.3 Gravemente doente: o voto da cruzada
Uma vez organizado e pacificado o reino, Luís organizou a sétima cruzada. Na origem desta expedição está a -grave doença que o acometeu, em dezembro de 1244, e que o deixou praticamente à beira da morte. Num esforço extremo para recuperar a saúde, o rei fez a promessa de que, se ficasse curado, iria organizar uma cruzada[13]. Depois de quatro anos de preparação, em junho de 1248, com sua mulher Margarida, e seus irmãos Carlos de Anjou, Afonso e Roberto de Artois, após receberem a bênção do papa Inocêncio IV, partiram para libertar o Santo Sepulcro. O reino ficou a cargo de sua mãe, Branca de Castela, que já dera provas suficientes de que teria condições de conduzi-lo na ausência do filho. Devido a uma série de reveses, incluindo tempestades que desviaram a frota, além de epidemias, os cruzados tomaram, em 08 de junho de 1249, a cidade de Damieta, no Egito. No caminho para o Cairo, deu-se a famosa batalha de Mansurá, onde perdeu a vida o irmão de Luís, Roberto de Artois. A disenteria e o escorbuto ajudaram a enfraquecer ainda mais a tropa. Luís e seus soldados foram feitos prisioneiros pelos muçulmanos. Sua mulher, Margarida, passou a comandar os cruzados. Após o pagamento de um vultuosa soma, Luís e seus soldados foram libertados depois de um mês de cativeiro, em maio de 1250. O rei e suas tropas passaram ainda quatro anos na Terra Santa, consolidando as fortalezas cristãs, conduzindo negociações entre cristãos e muçulmanos. Tendo recebido a notícia da morte da mãe, retornou à França, entrando em Paris em setembro de 1254[14].
A volta da cruzada, a saudade do Oriente: a morte às portas de Túnis
De volta da cruzada, entre 1254 a 1270, Luís continua desempenhando sua missão de monarca cristão. Se antes já exercia suas funções como rei exemplar, praticando a justiça e defendendo o direito, principalmente dos pobres, após o retorno do Oriente estas práticas se acentuam. Os estudiosos sublinham a mudança de comportamento após a volta da cruzada. A experiência frustrada deixou marcas profundas na alma de Luís. O rei justo, ético, modelo de cristão piedoso, passa a ser ainda mais cioso da prática da justiça, além de acentuar suas práticas de devoção e de piedade, e suas obras de caridade para com os pobres e os religiosos.
Desde que retornara da cruzada, o horizonte de vida de Luís passou a ser a Terra Santa. Em meio às funções que exigiam a administração do reino, o monarca deixava claro que não sossegaria enquanto não organizasse uma nova expedição à Terra Santa. A decisão foi anunciada a 25 de março de 1267. Em 04 de junho de 1270, Luís, seus filhos João Tristão e o herdeiro Filipe, além de vários nobres, partiram em direção a Túnis. Desembarcados às portas da cidade, uma forte epidemia de disenteria e febre ataca os cruzados. João Tristão morre a 03 de agosto. Depois de muito sofrimento, estendido sobre um leito de cinza em forma de cruz, Luís inicia sua definitiva viagem ao encontro daquele que tão ardentemente buscara nesta vida. Um longo processo iniciado logo após sua morte vai culminar com a canonização solene, sob o pontificado de Bonifácio VIII, em 1297. Sua festa foi fixada em 25 de agosto, dia de sua morte.
A espiritualidade que moveu São Luís de França
"Os contemporâneos do rei… praticamente não tinham como deixar de classificar esse soberano a não ser com a palavra santo - mas um santo excepcional, do mesmo modo que São Francisco o tinha sido como religioso, no início do mesmo século XIII"[15]. Esta afirmação do ilustre medievalista francês nos fornece elementos para uma análise da espiritualidade que inspirou os gestos e decisões do monarca, a ponto de ter sido declarado santo pela Igreja. Um dado importante é o fato de que Luís já era considerado santo por seus contemporâneos. Mas era um santo com um endereço definido: um santo franciscano. Ora, de onde vem esta percepção? Para dar uma resposta, temos que nos debruçar brevemente sobre a espiritualidade cristã que dominava então o Ocidente à época de Luís.
2.1 Espiritualidade medieval: movimentos de contestação, franciscanos e dominicanos
Nos séculos XII e XIII, um dos principais motes dos movimentos de contestação, liderados por leigos, mas também por clérigos, era a dura crítica que faziam à Igreja e seus membros, principalmente da hierarquia, por sua ligação com o "século", o apego às riquezas, a luta pelo poder, seu distanciamento dos fiéis a quem deviam pastorear, a incapacidade de pregar, seja pelo mal preparo intelectual, ou pela acomodação em que viviam, ao mesmo tempo em que mantinham os fiéis distantes da Palavra de Deus[16]. A resposta a esta incapacidade dos membros da Igreja de proferir uma palavra evangélica de esperança e de coragem à imensa massa dos fiéis, foram os movimentos alternativos, protagonizados por leigos e clérigos. Nem sempre ortodoxos, propunham meios para o retorno ao Evangelho, através principalmente da pregação e de um exemplo de vida pobre e humilde, calcado na vivência do Evangelho "sine glosa" (ao pé da letra). Alguns destes movimentos descambaram para a heresia. Consolida-se, aos poucos, a certeza de que o caminho de santificação não é exclusivo de clérigos, monges e membros da hierarquia, mas que todos, inclusive homens e mulheres casados, sem renunciar ao seu estado, também podem encetar a "Sequela Christi": seguir nu o Cristo nu.
Domingos de Gusmão, com os dominicanos, e Francisco de Assis, com os franciscanos, constituem, de um certo modo, o ponto de chegada de todo esse movimento de contestação. "Esses religiosos de um novo gênero, cujo rápido sucesso é extraordinário em toda a cristandade, vivem, diferentemente dos monges, entre os homens nas cidades, misturam-se estreitamente aos leigos e são os grandes difusores das práticas religiosas que renovam profundamente: a confissão, a crença no Purgatório, a pregação. Penetram nas consciências e nas casas, entram na intimidade das famílias e dos indivíduos. Praticam as virtudes fundamentais do cristianismo primitivo em uma sociedade nova: a pobreza, a humildade, a caridade"[17]. Diferentemente das instituições monásticas tradicionais, que vivem no isolamento de seus mosteiros, distante do "mundo", o espaço urbano, com todas as suas contradições e perigos, é o lugar privilegiado de atuação dos frades. Não moram em "conventos", mas em "locus", casas simples, em meio às pessoas, que deveriam converter pelo exemplo de vida.
Tendo suas origens como movimento misto, onde não havia a distinção entre clérigos e leigos, logo são assimilados pela Igreja e passam a fazer parte da hierarquia e a servir aos seus projetos de poder. Mas a origem laica e o protagonismo dos leigos sempre esteve no horizonte do movimento, ao menos como ideal. O melhor exemplo disto é o próprio Francisco de Assis, que era leigo, sem provas conclusivas de que teria sido ordenado diácono. Além de criar uma instituição para receber mulheres (as Damas Pobres ou Clarissas), Francisco também iniciou a Ordem Terceira, para leigos, homens e mulheres, casados ou não, que não precisavam "abandonar o mundo", mas poderiam se santificar permanecendo no seu estado de vida laica, em família. São Luís é leigo, e seu principal biógrafo também é leigo. A espiritualidade leiga que começa a avançar no século XIII, e a santidade, até então apanágio de clérigos e monges, passa a ser possível também aos leigos. Santificar-se vivendo o Evangelho em fraternidade, pobreza e penitência, praticado a caridade, anunciando, principalmente pelo exemplo de vida, a paz e o bem, eram os principais motes dos seguidores de Francisco de Assis. Luís se insere neste contexto.
2.2 São Luís e a espiritualidade mendicante
Na vida de São Luís, homem religioso e piedoso, os religiosos em geral ocupam um lugar de destaque. Mas entre estes, gozam de maior simpatia e familiaridade do rei aqueles que têm sua vida pautada por uma regra de mais estrita observância e radicalidade evangélica. A amizade que unia o rei e os beneditinos cistercienses era conhecida de todos[18]. O rei construiu para os monges uma belíssima abadia, a de Royaumont, e para lá se dirigia com prazer, com toda sua família, onde se entretinha com os monges, como se fosse um deles, nas orações, ofícios, práticas devocionais e de caridade. Outro grupo religioso que ocupa um lugar central na vida de Luís são os mendicantes, especificamente dominicanos e franciscanos[19].
Quando Luís nasceu, o movimento franciscano estava nos seus inícios, dando os primeiros passos fora da Úmbria. Francisco de Assis tinha uma ligação sentimental com a França: sua paixão pela língua francesa provavelmente estava na origem de seu nome[20]. Há indícios de que sua mãe fosse de origem francesa, e por isso era também chamada de "Provençal". Nos inícios da Ordem, Francisco havia tentado viajar à França, mas foi impedido pelo cardeal Hugolino, que o aconselhou a ficar na Itália[21]. Francisco enviou assim alguns frades. Frei Pacífico chega a Vézelay em 1217, e aí estabelece o primeiro convento franciscano em terras francesas, denominado "la Cordelle" (por causa da "corda" com os três nós que os frades usam)[22]. Em 1219, estão em Paris e em Saint Denis, onde serão conhecidos como "cordeliers". Em 1223, estão em Lens, no Norte da França.
Luís é muito próximo dos franciscanos e dominicanos, e é a espiritualidade preconizada pelos mendicantes que vai inspirá-lo no exercício de seu governo enquanto leigo cristão[23]. Os franciscanos, nas suas pregações nas cidades, são os maiores divulgadores desta espiritualidade nova, do Cristo vivo, encarnado, humano, humilde e sofredor, crucificado pelos pecados da humanidade. Uma espiritualidade cristológica, de um Cristo que se revela nos pobres, nos leprosos, nos abandonados[24]. É, ao mesmo tempo, uma espiritualidade penitencial, de conversão pessoal e de reforma, de combate aos abusos da Igreja, uma espiritualidade da "sequela christi" (seguimento de Cristo), do seguimento da "Vita Apostolica" (da vida dos Apóstolos), que encontra eco nas almas mais sérias e sedentas de uma prática cristã original, propugnada e popularizada pelos pregadores dos movimentos heréticos.
Luís pratica todos os atos de devoção, então comuns e esperados dos reis cristãos piedosos: os ofícios litúrgicos, a frequência aos sacramentos (confissão, comunhão), o culto às relíquias, o respeito à Igreja e a sua hierarquia, as práticas penitenciais e ascéticas, e a prática da caridade, principalmente para com os pobres. Sua mãe foi a grande responsável por discipliná-lo, desde a mais tenra idade, no caminho da devoção e da piedade. "No centro de sua vida está a oração, como um sol que ilumina todas as horas do dia. À meia noite o rei se veste para dizer as matinas na capela; depois ele torna a se deitar, mas semi-vestido, para estar pronto para se levantar assim que soe a hora da prima… Após a prima, a cada manhã, ao menos duas missas; uma breve, para os mortos, a outra cantada, que é a missa do dia. Durante a Quaresma, ele assiste uma terceira… Durante a jornada, algumas horas canônicas não podem faltar. Mesmo quando o rei cavalga, ele é acompanhado de seu capelão, e as horas são ditas a cavalo"[25].
Mas para além desses gestos de devoção e piedade esperados de um rei, aos seus contemporâneos Luís aparece como um homem que foi além: ele foi um rei que imitou Cristo. A bula de canonização vai se referir a isso. Luís imita Cristo no sofrimento. No século XIII as ordens mendicantes popularizam a prática da piedade através das obras de misericórdia. Para Luís, fé e devoção conjugam-se com obras. Uma prática comprovada por vários de seus biógrafos é o gesto de lavar os pés aos pobres e aos monges. Em várias ocasiões Luís realiza este gesto, imitando a humildade de Cristo. Quando pode, aos sábados, lava os pés de alguns anciãos, às escondidas, para evitar críticas. Depois os beija, dá-lhes dinheiro e os serve, ele mesmo, à mesa. "Quando São Luís está com os pobres, os seus gestos parecem pôr-se ao seu nível e apresentam-se como mais verdadeiros"[26]. O cuidado e o carinho com que Luís cuida dos pobres beira ao extremo: "E se entre esses pobres havia um cego ou alguém que via mal, o rei bendito colocava-lhe o pedaço de pão diretamente na mão com as suas próprias mãos, ou então guiava a mão do pobre até a tigela e ensinava-lhe como devia pôr a mão na tigela; e ainda mais, quando havia um que via mal ou estava impedido, e havia peixe diante dele, o rei bendito pegava no pedaço de peixe, tirava-lhe cuidadosamente as espinhas com as suas mãos, depois molhava-o no molho e punha-o na boca do doente"[27].
Vítima de vários males físicos, Luís se solidariza com os mais fracos. O rei se preocupa com os cegos, e para eles manda construir um hospital em Paris. Dá muitas esmolas aos pobres, principalmente aos leprosos, a quem cuidava carinhosamente, dava de comer, beijava-lhes a mão. Seus biógrafos destacam o fato de que ele se levantava muito cedo, sem fazer ruído, para ir à Igreja, para rezar, o que obrigava seus guardas a também se levantarem cedo, alguns tendo que se vestir correndo pelo caminho, para alcançar o rei. Quando os monges vão construir a abadia de Royaumont, Luís os ajuda a carregar pedras, e obriga seus irmãos a fazerem o mesmo, embora estes não o façam de bom grado[28].
Luís também obriga aqueles que o servem, sejam marinheiros ou soldados, a ouvirem longos sermões, e a participarem de ofícios religiosos. Para impedir que seus soldados almoçassem nas tavernas da cidade, lugares mal afamados, de jogos, bebida e mulheres, oferece-lhes o almoço no próprio local de serviço, no refeitório do palácio, sem cobrar por isso. Ao contrário, continuando dando aos soldados a ajuda de custo a que tinham direito para comer fora. Alguns o fazem a contragosto, pois comendo no palácio, seriam obrigados a ouvir sermões durante a refeição. Para Luís as tavernas eram tão perigosas quanto os bordéis.
Algumas destas práticas causavam transtornos no meio em que vivia o rei. Luís era consciente de que seu comportamento piedoso não agradava a todos, e suscitavam inúmeras críticas. Uma das mais comuns era o fato de gastar muito com esmolas e com a construção de edifícios religiosos[29]. Era claro, para os medievais, burgueses e nobres que o cercavam, que Luís não podia ultrapassar o limite do rei para o de sacerdote.
Uma forte crítica vinha daqueles que consideravam Luís como um refém dos colaboradores e conselheiros religiosos, principalmente dos franciscanos e dominicanos[30]. Um episódio contado por seu biógrafo franciscano Guillerme de Saint-Pathus, demonstra bem a sua proximidade com o clero. Diz-se que uma mulher o abordou na saída do parlamento, e teria exclamado: "Só és rei dos frades menores e dos pregadores, dos padres e dos clérigos!"[31]. A reação de Luís, segundo seu biógrafo, foi de calma. Concordou com a mulher, e disse que ela tinha razão, e que outro governaria melhor o reino. E pediu a seus soldados que dessem dinheiro a ela. O fato em si demonstra o quanto Luís prezava a companhia do clero, e como isso não era bem visto por alguns setores da sociedade[32].
2.2.1 Sua devoção à Paixão
A posse de relíquias era prática comum na Idade Média. Devoção, prestígio, necessidade de proteção eram elementos que se misturavam na procura por relíquias cada vez mais preciosas. Luís tinha um apreço especial pelas relíquias da paixão de Jesus. Prova disso é um acontecimento envolvendo a relíquia do cravo de Jesus. Em 1232, quando a relíquia foi exposta para veneração dos fiéis na catedral de Saint Denis, acabou caindo do relicário e desapareceu. Seguiu-se uma comoção em todo o reino. Guilherme de Nagis relata o sentimento do rei e sua mãe: "O santo rei Luís e a rainha sua mãe, quando souberam da perda desse altíssimo tesouro e o que tinha acontecido ao santo cravo sob seu reinado, sentiram grande dor e disseram que notícia mais cruel não podia ter sido levada a eles nem lhes fizesse sofrer mais cruelmente"[33]. Esta devoção era testemunhada publicamente na Sexta-Feira Santa: "A sua devoção à Cruz, especialmente na Sexta-Feira Santa, tem como momento forte a visita das igrejas 'próximas do lugar onde se encontrava': ia lá 'descalço', e depois, para a adoração da cruz, tirava o chapéu e a touca e avançava, de cabeça descoberta de joelhos, até à cruz, 'beijava-a', e por fim 'punha-se inclinado para o chão com os braços abertos, como na cruz, durante todo o tempo em que a beijava, e diz-se que enquanto fazia isto chorava'"[34].
Nada, porém, supera o esforço para conseguir duas das relíquias mais preciosas para a cristandade: a coroa de espinhos de Jesus e o lenho da Santa Cruz. Luís adquire a coroa do Imperador de Constantinopla, Balduíno. Quando a coroa entra em território francês, em 1239, depois de uma longa viagem desde Constantinopla, o rei e seus irmãos vão ao seu encontro. Carregam o relicário às costas, em procissão, vestidos de túnica branca e descalços, em sinal de humildade e penitência. Os nobres também se associam aos príncipes, participando descalços da procissão. Seguem-se a aquisição do lenho da Cruz e de outras relíquias da Paixão, como a esponja e o ferro da santa lança. Para guardar as relíquias, Luís construiu um dos maiores tesouros da arte gótica: a Saint-Chapelle, capela privada do rei. A estas relíquias preciosas soma-se o travesseiro de São Francisco, enviado ao rei pelos frades de Assis, quando de sua coroação, em 1226.
O movimento cruzado tem sua legitimação nesta devoção às relíquias: as terras onde Cristo nasceu, viveu e morreu, estão em mãos infiéis, de pecadores. Jerusalém, a maior relíquia da cristandade, precisa ser libertada.
2.2.2 Um rei paciente no sofrimento
Luís é um rei que, como cristão exemplar, suporta pacientemente os sofrimentos. E não são poucos. Ainda jovem, aos 28 anos, após a guerra contra os ingleses, começa a sofrer de febre terçã (uma espécie de malária). Em 1244, sofre com uma diarreia tão grave, que chegam a considerá-lo morto. Nesta ocasião faz o voto de partir em cruzada[35]. As doenças o perseguem, sejam as crônicas, como a febre ocasionada pelo paludismo, sejam outras que surgem em várias ocasiões: erisipela, diarreia, escorbuto. Mas todos testemunham a paciência do rei frente aos sofrimentos. Joinville testemunhou os sofrimentos do rei durante a sétima cruzada. Segundo ele, o rei, quando prisioneiro dos muçulmanos, sofria de grave infecção intestinal. Estava muito pálido, "com os ossos da coluna todos tão pontudos e tão fraco que era preciso que um homem de sua criadagem o levasse para todas as suas necessidades… À noite desmaiou por várias vezes; e, por causa da forte disenteria que tinha, foi preciso cortar o fundilho de suas ceroulas, tantas vezes ele descia para ir ao banheiro"[36]. Na partida para a oitava cruzada, o rei estava tão fraco que provocou a indignação de seu amigo Joinville, com aqueles que o deixaram partir naquele estado. O rei mal podia caminhar, pela fraqueza: "ele não podia aguentar ir nem de carroça nem a cavalo. Sua fraqueza era tão grande que ele se resignou que eu o carregasse…"[37]. Sua morte será causada pelo tifo. Mas Luís não é um rei triste. Le Goff afirma: "Talvez nisso também haja um traço de espiritualidade franciscana"[38].
2.2.3 Luís e o combate aos inimigos da Igreja
Uma das mais sérias ameaças à fé cristã na passagem do século XII para o século XIII foi a heresia cátara. Por ter seu centro principalmente na região de Albi, no sul da França, eram também chamados de Albigenses. No auge do reinado de Luís, após o duro combate da Igreja, inclusive com a pregação de Santo Antônio e outros grandes nomes das Ordens mendicantes, a heresia cátara havia se enfraquecido, mas permanecia como uma ameaça. Luís, fiel aos ditames do IV Concílio do Latrão (1215), que determinava que os soberanos cristãos dessem combate à heresia, recomenda ao filho nos seus ensinamentos: "Persiga os hereges e as pessoas ruins de tua terra tanto quanto possas, pedindo como é necessário o sábio conselho das pessoas boas a fim de purgar assim a terra". Na concepção medieval de colaboração entre Igreja e Estado, o soberano é o defensor da fé e a realeza é o braço secular da Igreja, que deve "caçar" e combater os hereges.
Em relação aos muçulmanos, o fato de se empenhar na realização de duas cruzadas exemplifica bem o quanto esta atividade era importante para Luís. Os muçulmanos eram, sobretudo, os infiéis, e deveriam ser convertidos. De um rei piedoso cristão, o mínimo que se esperava é que se empenhasse na defesa da fé frente ao islã[39]. No entanto, em que pese a violência das cruzadas, em vários momentos, especificamente da primeira, Luís entra em diálogo com os muçulmanos. Algumas fontes afirmam que, durante sua prisão, surgiu um afeto e respeito mútuo entre o rei e o sultão que o mantinha prisioneiro. Outros autores relatam que os muçulmanos teriam pedido a Luís que se tornasse seu chefe. O biógrafo Godofredo de Beualieu, testemunha ocular da morte do rei, revela que, no momento extremo de sua agonia, umas das últimas palavras balbuciadas pelo rei foram de preocupação com a conversão dos muçulmanos: "tentemos, pelo amor de Deus, pregar e implantar a fé católica em Tunis. Òh como poderíamos enviar um pregador capaz a Tunis", e teria citado um pregador que já havia pregado em Tunis, e se tornara conhecido do sultão.
A relação de Luís com os judeus é mais complexa. Antes de mais nada, não podemos julgar as relações entre cristãos e judeus na Idade Média a partir dos parâmetros contemporâneos de ecumenismo e tolerância, que são conquistas modernas. Luís age como os soberanos cristãos de seu tempo. Os judeus, embora sejam uma verdadeira religião, são considerados os "assassinos de Cristo". Luís tomou medidas severas contra os mesmos, visando a "purificação do reino", mas ao mesmo tempo os protegeu do abuso de extremistas. Também promoveu a conversão de vários deles, e foi padrinho de alguns judeus convertidos.
Outro perigo que rondava o Ocidente medieval era a ameaça tártara, representada pelos mongóis. Luís acalentava o sonho de aliar-se a eles para combater os muçulmanos. Depois de algumas expedições fracassadas, enviadas pelo papa, Luís enviou o dominicano André de Longjumeau, que também não obteve sucesso. Por fim, em 1253, foi enviado o franciscano Guilherme de Roubroek, que se aventurou até a Mongólia, ao Grande Khan, em Karakorum, no coração do reino mongol. Apesar da valiosa relação que o franciscano fez da vida e dos costumes mongóis, o resultado desta missão também foi efêmero. Finalmente, em 1264, uma embaixada de 24 mongóis, tendo à frente dois frades dominicanos como intérpretes, se apresentou em Paris, propondo ao rei uma aliança contra os muçulmanos da Síria. Também esta tentativa de aliança não frutificou.
O franciscanismo reformador de Luís de França
A proximidade de Luís com os franciscanos e dominicanos é-nos atestada por uma anedota, transmitida por seus biógrafos: "Godofredo de Beaulieu e Saint-Pathus afirmam que Luís quisera fazer-se dominicano ou franciscano, mas não soube decidir-se sobre as duas ordens, e a rainha Margarida (sua esposa) à qual teria manifestado a sua intenção de deixá-la para entrar no convento na altura em que fosse possível transmitir a coroa ao filho maior, tê-lo-ia dissuadido de tal propósito"[40]. Embora contestado pelos historiadores modernos, este fato, relatado pelos biógrafos contemporâneos ao santo testemunham a proximidade de Luís, senão a simpatia de que gozavam diante dele os franciscanos e dominicanos. Mais séria é, no entanto, a afirmação de que ele teria desejado que seu segundo e terceiro filhos se tornassem frades, um dominicano, outro franciscano[41]. Por outro lado, como já acenamos, os biógrafos são concordes sobre a crítica que se fazia no reino, à imagem de um rei manipulado pelos mendicantes, sendo ele mesmo, quase um frade sobre o trono.
O pesquisador Jean-Philippe Genet afirma que os dominicanos exerceram uma influência fundamental sobre o pensamento político de São Luís. A ideia de um rei como padrão de comportamento moral, um rei com a virtude da sabedoria, teria sido construída e seguida por Luís, seguindo os ditames dos sábios teólogos e filósofos dominicanos que dominavam a universidade de Paris, nos anos 1250-1280[42]. Apesar de Le Goff afirmar que as elocubrações filosófico-teológicas que fervilhavam na universidade de Paris não interessavam a Luís, o fato é que Luís se cercou de grandes nomes da intelectualidade de seu tempo, pensadores, filósofos e teólogos, principalmente franciscanos e dominicanos, que colaboraram na administração e ajudaram a dar uma determinada direção política ao reino. Le Goff afirma que havia em Paris "uma 'academia política' de São Luís cujo coração era o convento dos jacobinos, o célebre convento de Saint-Jacques dos dominicanos parisienses"[43]. Vicente de Beauvais, dominicano, autor do Speculum Maius, a principal enciclopédia utilizada na Idade Média, era um de seus mais próximos colaboradores[44].
Podemos afirmar que dominicanos e franciscanos rivalizavam no papel de conselheiros do rei. Da parte dos franciscanos, porém, graças às pesquisas dos últimos anos, sabemos que Luís tinha um apreço particular pelos frades empenhados numa vivência mais radical dos ditames do Evangelho, que chegavam quase a se constituir uma "seita" dentro da Ordem franciscana. Referimo-nos, aqui, à proximidade de Luís com o movimento dos "Espirituais"[45]. E nesse particular, um encontro vai causar profunda impressão no rei da França.
3.1 O encontro com frei Hugo de Digne
Em 1254, voltando do Oriente derrotado, após a morte da mãe, Luís ouve falar de frei Hugo de Digne, um frade franciscano da corrente dos espirituais, defensor das ideias de Joaquim de Fiore. Frei Hugo era um grande pregador, que arrebatava multidões[46]. Em Hyères, Luís pediu para trazerem o frade à sua presença, pois queria ouvi-lo pregar. Ficou tão maravilhado que queria, a todo custo, que o frade se juntasse a seu séquito que retornava para Paris. Hugo se negou peremptoriamente. Acabou ficando apenas dois dias com Luís, mas este encontro marcou, a partir de então, a vida e o governo do rei. Hugo, segundo as palavras do biógrafo de Luís, Joinville, exortou ao rei que este "deveria se conduzir de acordo com seu povo". No fim do sermão o frade afirmou que nunca tinha lido que um reino ou domínio se tivesse perdido ou passado a um outro senhor, "a não ser por vício de justiça". E terminou: "Ora, que atente o rei, continuou, uma vez que vai para a França, que faça tanta justiça a seu povo que o povo assim conserve o amor de Deus, de tal maneira que Deus não lhe tire o reino de França com a vida"[47].
Depois de 1254, Luís assumiu um comportamento sempre mais austero. No dizer de seus biógrafos, passou "da simplicidade, à austeridade". E este espírito passou à atuação política. Um sinal claro desta orientação foi a chamada "Grande Ordenação", de dezembro de 1254. Trata-se de uma série de determinações legais que objetivavam reformar profundamente o governo do reino. Entre elas, destacam-se aquelas visando uma moralização da administração pública, para um governo justo (ético e não corrupto, diríamos hoje). Os oficiais do reino deveriam fazer justiça sem fazer distinção de pessoas. Não deveriam aceitar presentes, nem para suas mulheres ou filhos. Também em relação aos costumes e à moral eram promulgadas medidas severas: contra a blasfêmia, contra os jogos, contra a prostituição, contra a usura. No espírito da época, são emanadas também leis contra os judeus.
3.2 Outros franciscanos influentes no "entourage" de Luís
O encontro e as palavras proféticas de Hugo de Digne certamente impressionaram profundamente o espírito de Luís, educado desde criança num ambiente de piedade, que favorecia uma mística religiosa e devocional, de busca de realizar, na terra, o reino de Deus. Mas já antes deste encontro o rei mantinha, em sua "entourage", além dos dominicanos, religiosos franciscanos empenhados com a seriedade da reforma dos costumes. Um dos franciscanos mais próximos de Luís é o mestre da Universidade de Paris, Eudes de Rigaud.
Eudes era mestre regente do convento de Paris e mestre de teologia na universidade daquela cidade. Foi o sucessor de Jean de la Rochelle e de Alexandre de Hales, e foi mestre de São Boaventura. Eudes é um dos "Quatro Mestres", que redigiram o comentário oficial da Regra franciscana, em 1242[48]. Em 1248 foi nomeado arcebispo da diocese de Rouen, a mais importante da França, mas continuou fazendo parte do círculo dos amigos do rei, sendo um dos frades franciscanos mais íntimos de Luís: "Seu mais próximo conselheiro e amigo", nas palavras de Le Goff[49].
Em 1255 ele celebrou o casamento da filha de Luís, Isabel. A partir de 1258 Eudes se encontra frequentemente na corte. Em novembro de 1258 presidiu a missa no aniversário de morte de Luís VIII, pai do rei. Os documentos testemunham vários encontros do rei com o arcebispo franciscano, em 1259 e 1260, quando da morte de seu herdeiro, o primogênito Luís. Em 1261 ele foi convidado a pregar na Saint-Chapelle. Sabe-se que, quando o rei estava na abadia de Royalmont, pedia que Eudes presidisse a celebração, como na festa de Pentecostes de 1262. A presença de Eudes na corte se justifica também pelas missões diplomáticas que o rei lhe confiara, como o tratado entre a França e a Inglaterra, em 1259. Em 1264 Eudes tornou-se membro do Parlamento de Paris.
Destaque-se, no comportamento do arcebispo franciscano, seu espírito reformador e de combate aos abusos no clero regular e secular. Visitando incansavelmente todos os mosteiros, abadias e conventos masculinos e femininos de sua arquidiocese, Eudes conseguiu dar uma nova imagem à Igreja. Seus escritos somam mais de mil páginas, consistindo hoje num documento de valor inestimável para conhecermos a realidade da Igreja em uma região da França, no século XIII. Antes de morrer, Luís o designou um de seus executores testamentários. Eudes também tornou-se membro do Conselho de Regência encarregado de governar a França, sendo o primeiro membro nomeado pelo rei Felipe III, sucessor de Luís, quando ainda se encontrava em Cartago, em outubro de 1270.
Ainda no campo intelectual, outro mestre franciscano de Paris muito próximo do rei é Gilberto de Tournai. Das poucas informações que nos chegaram sobre ele, sabemos que era mestre de teologia em Paris, amigo de São Boaventura e de Luís, e pregador de cruzadas. Escreveu várias obras de cunho pedagógico. Algumas dessas obras nasceram da amizade com o rei, como a Eruditio Regum et Principum (Educação dos reis e dos príncipes), uma coleção de três cartas escritas em 1259, endereçadas a Luís, versando sobre os princípios necessários ao bom governo dos príncipes[50]. Depois de 1261, Gilberto abandonou a cátedra para viver uma vida de oração e contemplação. A pedido de Boaventura, participou do 2º. Concílio de Lião, em 1274, onde teria apresentado sua obra De Scandalis Ecclesiae[51].
Boaventura de Bagnoregio era um dos maiores pregadores da época, mestre da universidade de Paris até 1257, quando foi eleito Ministro Geral dos Franciscanos, também era admirado por Luís, que o convidava para pregar em sua presença. Boaventura pregou pelo menos dezenove vezes diante do rei.
A proximidade e intimidade entre Luís e os franciscanos mostra-se numa querela séria, que estourou na Universidade de Paris. Entre 1254 e 1257, alguns mestres seculares colocaram em questão o estilo de vida dos mendicantes, uma novidade que, segundo eles, ia contra o Direito Canônico, especificamente por causa do princípio mendicante e do ensino universitário e da pregação. O chefe dos seculares era Guilherme de Saint-Amour. Depois de uma acirrada polêmica, com a intervenção dos maiores mestres da época, Boaventura e Tomás de Aquino, entre outros, a Santa Sé reconheceu, por duas vezes, o direito dos frades. O rei Luís executou imediatamente as ordens em favor dos frades. Obrigou Saint-Amour a entregar seus cargos e benefícios, proibiu-o de pregar e ensinar, e o exilou da França[52].
3.3 Um encontro de Luís com os frades
Frei Salimbene de Parma, cronista medieval, é o responsável pela descrição de um dos mais belos quadros de convivência do rei Luís com os franciscanos. Salimbene viajou a Sens, na França, para participar do Capítulo Geral. Além das autoridades da Ordem, como o Ministro Geral João de Parma, chega ao local o rei da França, dirigindo-se em peregrinação para a cruzada. Salimbene descreve a cena da chegada do rei. Povo e religiosos se aglomeram à espera da chegada do rei. Em meio à multidão, perdido, porque se atrasara e os outros frades já tinham ido ao encontro do rei, encontra-se o franciscano Eudes de Rigaud, arcebispo de Rouen, que, mitra na cabeça e cajado à mão, gritava: "Onde está o rei? Onde está o rei?". Salimbene passa a descrever o rei: "O rei era esbelto e delicado, magro e alto, tendo um rosto angelical e face simpática. E vinha à igreja dos Frades menores não na pompa régia, mas no hábito de peregrino, tendo uma sacola e bordão de peregrinação ao pescoço que decoravam muito bem as espáduas do rei. E vinha não a cavalo, mas a pé; e os seus irmãos de sangue, que eram três condes, […] seguiam-no em semelhante humildade e hábito. […] Na verdade, parecia mais um monge, quanto à devoção do coração, do que um cavaleiro, quanto às armas de guerra. E assim, entrando na igreja dos irmãos, tendo feito a genuflexão mui devotamente diante do altar, rezou. […] Em seguida, o rei disse, com voz bem clara que ninguém entrasse na sala do Capítulo, a não ser os cavaleiros, exceto os irmãos, aos quais ele queria falar. E quando estávamos reunidos no Capítulo, o rei começou a relatar seus atos, recomendando-se a si mesmo, aos irmãos e a rainha sua mãe, e toda sua comitiva; e, fazendo genuflexão com muita devoção, pediu as orações e os sufrágios dos irmãos"[53].
Frei João de Parma tomou a palavra e prometeu as orações da Ordem, devendo cada padre celebrar quatro missas pelo rei. Após o encontro, seguiu-se um lauto banquete, tudo às expensas do rei. Frei João de Parma, embora tendo lugar reservado ao lado do rei, preferiu sentar-se com os mais pobres[54].
No dia seguinte o rei retomou seu caminho em direção ao porto que o levaria para a Terra Santa. Mas ainda faria vários desvios, para visitar os eremitérios franciscanos pelo caminho, onde se punha em oração. De novo é frei Salimbene quem nos descreve uma destas visitas. Em Vézelay, no dia 21 de junho de 1248, o rei e seus três irmãos dirigiram-se ao convento dos frades, modesto e recém-construído. Entraram na igreja e, embora os frades lhes oferecessem bancos e cadeiras, o rei se senta no chão, na poeira, já que o piso da igreja ainda não estava pavimentado. Sentados todos no chão, em círculo em volta do rei, este lhes dirige a palavra e se recomenda às suas orações[55].
Conclusão
A infância do príncipe Luís foi marcada pela presença dos primeiros franciscanos que chegaram à França. Religiosos austeros, piedosos, penitentes, mas ao mesmo tempo plenamente inseridos nos centros urbanos que surgiam, cientes de suas labutas e ambiguidades cotidianas, seja na política, seja no mundo acadêmico ou eclesiástico-religioso.
Franciscanos e dominicanos influenciaram o modo de Luís impostar a política na França. Ambas as Ordens contavam com homens preparados, intelectuais e pensadores que dominavam as cátedras na universidade de Paris. Da parte especificamente franciscana, é interessante notar que Luís se cerca daqueles frades imbuídos de uma nova visão do modo de ser religioso e de impostar as relações com o mundo. O empenho nas reformas, a radicalidade de vida, o combate aos abusos, a visão alegórica, apocalíptica e milenarista, prospectando um mundo diferente, transformado pela radicalidade evangélica, marcam a vida destes homens. Mas não são monges, isolados nos eremitérios e mosteiros, distantes e alheios aos problemas humanos. Ao contrário, são religiosos empenhados em buscar respostas às grandes questões e desafios que aquele momento e aquela sociedade lhes propõem, vivenciando-as e conhecendo-as a partir de dentro. Le Goff afirma que "São Luís… entre os franciscanos estava inclinado a seguir os joaquimitas: mas ele se cerca daqueles que se impõem por sua influência na sociedade da segunda metade do século XIII, quer dizer, pessoas da Igreja que buscam antes de tudo achar um modus vivendi entre as novas seduções da vida, o desenvolvimento de uma economia de troca e empréstimo, e as necessidades da salvação. Pessoas partidárias tanto do compromisso religioso como do compromisso social, de uma evangelização da sociedade nova equilibrando o admissível e o inaceitável"[56].
Os franciscanos correspondem muito bem a esse novo modus vivendi: são homens de uma piedade e seriedade religiosa a toda prova, fautores da pobreza e da simplicidade, vivem nas cidades, e estão nos grandes centros de estudos, discutindo em pé de igualdade com os maiores pensadores de seu tempo, dando respostas pertinentes e eficazes aos desafios dos novos tempos. São homens que entendem as necessidades, a linguagem e os desafios das cidades. Encontram-se, com a mesma desenvoltura, nos mais simples e humildes tugúrios ou nos palácios e parlamentos dos reis. Homens preparados e capazes de corresponder às exigências dos espíritos mais sérios e preocupados em impostar uma política de governo que correspondesse aos desígnios de Deus. Mas, ao mesmo tempo, capazes de guiar os espíritos humanos nas árduas batalhas espirituais travadas dia a dia na busca da salvação da própria alma. Com os discípulos de Francisco de Assis, Luís de França aprendeu a cuidar bem da cidade dos homens, sem perder de vista a Cidade de Deus.
Na peregrinação em busca da salvação, a exemplo de Francisco de Assis, Luís seguiu os passos do Cristo da Paixão. Através da penitência, do sacrifício e da caridade para com o próximo, os pequenos e pobres, conseguiu atingir a meta. Na decisão de partir para a segunda cruzada, doente e enfraquecido, estava a certeza de que a derrota da primeira fora causada por sua culpa, por causa de seus pecados. Assim, a cruzada revela-se como uma via purgativa, de salvação e de conformação com o Cristo pobre e sofredor[57]. A morte na cruzada é a conclusão ideal de sua vida.
As palavras dirigidas ao filho no seu Testamento Espiritual representam o ponto de chegada de uma vida pautada pela busca do bem comum, e pelo empenho pela própria salvação, seguindo as pegadas de Cristo: "Filho dileto, começo por querer ensinar-te a amar ao Senhor, teu Deus, com todo coração, com todas as forças, pois sem isto não há salvação… Guarda, meu filho, um coração compassivo para com os pobres, infelizes e aflitos e, quanto puderes, auxilia-os e consola-os. Por todos os benefícios que te foram dados por Deus, rende-lhe graças para te tornares digno de receber maiores. Em relação a teus súbditos, sê justo até o extremo da justiça, sem te desviares; e põe-te sempre de preferência da parte do pobre mais do que do rico, até estares bem certo da verdade. Procura com empenho que todos os teus súditos sejam protegidos pela justiça e pela paz, principalmente as pessoas eclesiásticas e religiosas. Sê dedicado e obediente a nossa mãe, a Igreja Romana, ao Sumo Pontífice, como pai espiritual. Esforça-te por remover de teu país todo pecado, sobretudo o de blasfêmia e heresia. Ó filho muito amado, dou-te, enfim toda bênção que um pai pode dar ao filho e toda Trindade e todos os santos te guardem do mal. Que o Senhor te conceda a graça de fazer sua vontade de forma a ser servido e honrado por ti. E assim, depois desta vida, iremos juntos vê-lo, amá-lo e louvá-lo sem fim. Amém"
Fonte: https://cffb.org.br/sao-luis-de-franca-e-os-franciscanos/